sexta-feira, 16 de março de 2012

O amor acaba


O amor acaba . Numa esquina , por exemplo , num domingo de lua nova , depois de teatro e silêncio ; acaba em cafés engordurados , diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar ; de repente , ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto , polvilhando de cinza o escarlate das unhas ; na acidez da aurora tropical , depois duma noite votada à alegria póstuma , que não veio ; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema , como tentáculos saciados , e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão ; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado ; na insônia dos braços luminosos do relógio ; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg , entre risos de alumínio e espelhos monótomos ; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão ; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus , filho crucificado de todas as mulheres ; mecanicamente , no elevador , como se lhe faltasse energia ; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar ; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes ; nas , ligas , nas cintas , nos brincos e nas silabas femininas ; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia , onde o amor pode ser outra coisa , o amor pode acabar ; na compulsão da simplicidade simplesmente ;  no sábado , depois de três goles de mornos de gim à beira da piscina ; no filho tantas vezes semeado , às vezes vingado por alguns dias , mas que não floresceu , abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores ; em apartamentos refrigerados , atapetados , aturdidos de delicadezas , onde há mais encanto que desejo ; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos , caindo imperceptível no beijo de ir e vir ; em salas esmaltadas com sangue , suor e desespero ; nos roteiros de tédio para o tédio , na barca , no trem , no ônibus , ida e volta de nada para nada ; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba ; no inferno o amor não começa ; na usura o amor se dissolve ; em Brasília o amor pode virar pó ; no Rio , frivolidade ; em Belo Horizonte , remorso ; em São Paulo , dinheiro ; uma carta que chegou depois ,o amor acaba ; uma carta que chegou antes , o amor acaba ; na descontrolada fantasia da libido ; às vezes acaba na mesma música que começou , com o mesmo drinque , diante dos mesmos cisnes ; e muitas vezes acaba em ouro e diamante , dispersado entre astros ; e acaba nas encruzilhadas de Paris , Londres , Nova Iorque ; no coração que se dilata e quebra , e o médico sentencia imprestável para o amor ; e acaba no longo périplo , tocando em todos os portos , até se desfazer em mares gelados ; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo ; na janela que se abre , na janela que se fecha ; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa , que continua reverberando sem razão até que alguém , humilde , o carregue consigo ; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido ; mas pode acabar com doçura e esperança ; uma palavra , muda ou articulada , e acaba o amor ; na verdade ; o álcool ; de manhã , de tarde , de noite ; na floração excessiva da primavera ; no abuso do verão ; na dissonância do outono ; no conforto do inverno ; em todos os lugares o amor acaba ; a qualquer hora o amor acaba ; por qualquer motivo o amor acaba ; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba .

Paulo Mendes Campos 

Nenhum comentário:

Postar um comentário